sábado, 10 de abril de 2010

Reencontro

Se nos reencontrássemos ao acaso, saberia dos meus impulsos menos doces, embora mais intensos, talvez. As mãos estariam milagrosamente secas, assim como o local escolhido para a conversa seria finalmente um café. As borboletas que me afligiam o estômago e o profundo sopro gélido a atravessar minhas veias feneceram – quem diria!? As pupilas deixaram de reconhecer facilmente o sol, aquele mesmo que eu celebrava solitário, romântico, adorador das punhaladas violentíssimas próprias das paixões arrebatadoras. As lágrimas educaram-se, sabem correr por conta própria, dosando o ritmo como um experiente corredor nas maratonas extenuantes das bandas de cá. No rosto, não se abriram rugas; a textura parece a mesma, embora um pouco menos magra – provavelmente um sintoma do decrescente rubor causado pela timidez daqueles tempos.

A acidez, essa não diminuiu. Ironia que não se finda, amigos dizem que “está na essência”. Não deixei de ser avesso a definições metafísicas. Ainda gosto da materialidade, da carne, do desejo, da sede e do sonho. Viver não é existir. Existir é sentir-se vivo. E, para isso, tratei de reanimar minhas capacidades de apaixonar-me severa e constantemente. Pelas palavras, por alguém, por uma idéia, por um sussurro de vento que me acomete em uma súbita e musicada caminhada vespertina.

Saberia você, no segundo gole de café, que os meus estão bem. Os velhos estão mais velhos – em todos os sentidos – e os pequenos resolveram crescer de uma hora para outra. Saudáveis e próximos do mesmo caminho que todos trilhamos – fato não necessariamente tido como alegria. Vejo nas pequenas aflições de ambos os terremotos de minha infância, quando eu achava estar o fim em cada esquina. Prefiro não lhe contar dos possíveis porvires.

Poesia ainda teima comigo. Tentei desgarrar durante algum tempo, como se ela fosse a solene culpada por tudo o que aconteceu. Realmente, se não existissem rimas e articulações semânticas mirabolantes, o meu sofrimento poderia ter sido atenuado. Mas arrependimento, sim, mata. Por isso mesmo, perdoei a poesia. E ela veio correndo me abraçar sem rancor algum, beijando meu rosto em um ritmo tão acelerado que me senti incapaz de abarcar tanto amor. As letras são apenas a materialidade de um estado de ser poético, de uma lente que usamos para ampliar as amarguras e sabores do mundo. Com poesia, este café quente é inquestionavelmente mais delicioso.

O trabalho ainda está uma muleta, mas agora uma muleta dourada. Às vezes me arranca um pouco de suor, mas provê boas condições de tomar um segundo café como este que pagaria daqui alguns minutos do nosso tempo. Sem reclamações de grande ordem nesse sentido.

Agora quero saber de você, dos seus estudos, do futuro que planeja ter, se os seus pais ainda estão com aquela mania de não gostar de mim. E sua irmã, casou? Sem falar na sua tia protetora. Sim, eu sei do seu apreço por ela, mas não consigo resistir. É isso, eu não consigo resistir. Eu nunca consegui resistir.

Tem ouvido quais músicas? Ainda dança e cantarola sozinha em casa com o som no maior volume? Lembra-se daquela festa em que, ocultos, nos escondemos atrás da fumaça que produzíamos com nossa imaginação? Ou das minhas aparições súbitas em forma de chocolates, chicles ou qualquer outro doce no seu estojo?

E se eu não reconhecê-la no dia em que nos encontrarmos por acaso na mesma avenida que nos uniu e separou, não há problema. O meu péssimo olfato ainda recorda o seu perfume. Era ele que me dizia da textura dos seus cabelos tão negros, deslizantes e desonestos. Ah, com qual destreza mentiam para mim! Mesmo depois que nossos dedos se abandonaram entre aqueles soluços contidos, a inércia daquele sabor adocicado me perseguia, sádica. Mas sobrevivi, não vê?

Tanto sobrevivi que preciso escutar um pouco dos seus conselhos. Não que os preze por costume, porque jamais os recebi; mas seria interessante saber o que você pensa sobre o que anda acontecendo. Mas que fique entre nós o segredo. Somos amigos com segredo de amantes, pode ser assim? Ótimo.

Por isso que estamos aqui, não? Talvez.

Tem lá os seus defeitos, uma série deles, ainda bem. Faço questão de investigá-los e provocá-los sem que saiba. Os mais profundos elogios emergem justamente da imperfeição. Prefiro-a de roupas erradas, de frases vacilantes, de bases estremecidas, de uma vaga elevação, entorpecida discretamente por uma bebida ou um texto. Incendeia-se por dentro, sabia? Conhecer a sordidez alheia é um passo fundamental para seguir em frente. Sem medo, sem reservas. E a sua sordidez, agora amiga, poderia ter eternizado os nossos cafés, não é mesmo?

Isso sem contar os sonhos! Eu tinha perdido a capacidade de ver qualquer imagem enquanto dormia. Eis que recentemente eu recuperei a visão. Como é bom poder enxergar-se novamente por dentro. Fiquei assustado no reinício, porém ao despertar com um formigamento nos lábios notei que minha boca estava ressentida do beijo dado na vigília mais transparente dos meus anseios: na clareza inquestionável do imaginário.

Eu viveria essa maldição pelo resto dos meus dias. Esse transitar entre a ironia mais cortante e o beijo silencioso, obtuso. Esse despertar úmido dos corpos sucedido de uma palavra torta; um caminhar em atropelo que desemboca feito rio em um encontro doentio; um dizer, um morder os lábios em selvageria que nos preenche de um bom medo; um cigarro compartilhado junto com histórias ocultas que dóem e nos empurram no caminho em que o tempo corre e por nós é feito, em que o marasmo é soterrado pela fome de viver, de abrir janelas, de materializar o futuro a partir do desconhecimento, a partir do mistério que dá graça à vida, essa imensa ironia que – se um dia nos fez amantes, hoje faz de você minha conselheira. Essa mesma brincadeira de criança que me faz desejá-la por ignorância, traindo minha racionalidade, ligando-me pelas forças que nos unem por meio da poesia, da ganância, do querer, do fazer, do burlar. E isso não tem nome. Tem sim, corrijo: o seu.

Desconhecer é a forma mais respeitosa e menos preconceituosa de conhecer. É saber de algo por vias escusas, traçadas com desleixo e não menos certeiras. Nunca me deliciei tanto com a ignorância. Sem pressa. Pausadamente.

Quanto a você, sim, está perdoada. O próximo café você paga. E avise antes, pois ainda existem umas coisas suas comigo para eu devolver.

4 comentários:

Juliana Novaes disse...

num reecontro, uma dama daria a vida pra saber se o coração do cavalheiro chora ou se declara!

Willian Lins disse...

Nem choro, nem declaração...
É só uma certeza - de bem-querer, e só.

Juliana Novaes disse...

de bem-querer, e só.²

Lelê Manna disse...

Importante! Real! Bonito! Doído! Amei!!!